Esta Investigação de quase um ano realizada por veículos de dez países descobriu que, amparados nas leis de liberdade de culto, algumas igrejas e líderes religiosos nas Américas abusam da confiança de seus fiéis e cometem crimes como lavagem de dinheiro e fraude
Por: Rebekah Ward, Beatriz Muylaert, Matthew Albasi, Giannina Segnini. Com reportagem de: Mariel Fitz Patrick, Asier Andrés, Raúl Olmos, Rute Pina, Flávio Ferreira, Martha Soto, Mercedes Agüero R, María Teresa Ronderos, Andrés Bermúdez Liévano, Lucas Silva, Nathan Jaccard e Emiliana García
“Estou cansada das drogas, das terapias e tudo o que me fizeram”, diz uma mulher apoiada em duas muletas. O pastor Jorge estava agachado na beira do palco e lhe estendia o microfone. Em seguida, aproximou-o de si mesmo: “Mas hoje Cristo veio com sua mão poderosa, com um sopro a libertou das muletas. Dêem glória a Deus! Pegue suas muletas, levante-se da cama e ande”, vociferou o pastor no auditório.
O vídeo que documenta o culto de cura, publicado no YouTube em 2012, mostra em seguida outro fiel que, exibindo seu braço esquerdo, pega o microfone. “Eu tinha uma dor forte aqui. Quando o pastor orou, senti um calor tremendo e ele comecei a sacudir”, diz.
O “Pastor Jorge” que despertava tanta devoção dos fiéis é Jorge Mercedes Cedeño, que tinha sua própria igreja chamada “El Rugido del León” (O Rugido do Leão), no leste da República Dominicana. O Rugido do Leão também estava presente na Colômbia, e o dominicano visitou o país em diversas ocasiões como pregador convidado, segundo notícias da época. O pastor também era membro da ONG Organização Paz Colombiana, presidida pelo pastor colombiano Orlando Arce Ortiz, que dizia ser bispo anglicano e era líder de outra igreja no país.
Os dois foram presos pela polícia colombiana em maio de 2015, suspeitos de lavagem de dinheiro através das igrejas e da ONG. A Procuradoria-Geral da Colômbia mais tarde também acusou o “Pastor Jorge” de “ter usado seu papel de líder religioso para adquirir bens no exterior em troca de grandes quantidades de dinheiro que foram enviadas ao seu país como supostas ofertas de fiéis”. Arce Ortiz foi acusado de administrar a logística, a documentação e as conexões políticas nas operações de lavagem de dinheiro.
Ambos se declararam responsáveis por administrar as finanças e comprar propriedades para Los Urabeños, um grupo liderado por Dairo Antonio Úsuga David, conhecido como “Otoniel”. Atualmente chamado de Clã do Golfo pelo governo colombiano, trata-se de uma das organizações criminosas mais perigosas da Colômbia, com cerca de 1600 membros e responsável por centenas de sequestros e assassinatos de civis inocentes, segundo informações da polícia.
Os dois homens criaram uma religião e enganaram fiéis, que acreditavam honestamente em seus pastores. Leis brandas ou inexistentes que protegem religiões permitiram que essa rede internacional saísse impune por vários anos.
O Rugido do Leão é apenas um de numerosos casos no continente que refletem a forma que igrejas de bairro e algumas grandes congregações religiosas usaram portos seguros para esconder dinheiro de origem ilícita e acumular fortunas, usando as doações de seus seguidores como fachada. São paraísos de dinheiro e fé.
Em uma investigação internacional de um ano, Columbia Journalism Investigations (CJI), o Centro Latinoamericano de Jornalismo Investigativo (CLIP), Occrp e dez meios de comunicação da região encontraram diversos outros casos – alguns comprovados e outros em investigação – que sugerem que há conexão entre igrejas e/ou líderes religiosos com atividades financeiras ilícitas.
A colaboração jornalística produziu uma base de dados com casos judiciais recentes que relacionavam lavagem de dinheiro e delitos adjacentes – como tráfico de drogas – com grupos religiosos de quaisquer crenças e denominações nas Américas. Esta documentação resultou de buscas sistemáticas em fontes especializadas online, fontes públicas e entrevistas realizadas pelos colaboradores com autoridades judiciais em nove países. Esse foi o ponto de partida desta história.
O fenômeno criminoso refletido pela base de dados não é, de forma alguma, representativo de todas as igrejas e organizações religiosas do continente americano. Muitos líderes religiosos prestam serviços valiosos para suas comunidades. No entanto, a análise dos casos confirmou que várias congregações estão abusando da confiança de seus fiéis enquanto usam seus espaços de culto para cometer e esconder crimes.
“Ao longo dos anos, instituições religiosas foram usadas repetidamente para lavar dinheiro”, afirma Mark Califano, ex-vice-procurador de justiça dos Estados Unidos e atual chefe legal do escritório Nardello & Co. “E o que permitiu que isso acontecesse foi a posição especial e protegida de que elas gozam na maioria das sociedades” completa.
Em linha, outro especialista no tema, Warren Cole Smith, CEO da Ministry Watch, uma organização evangélica norte-americana independente e sem fins lucrativos explica que as igrejas, assim como outras atividades nas quais circula dinheiro vivo, têm certas vulnerabilidades.
“Muitas dessas organizações também arrecadam dinheiro internacionalmente. E a arrecadação de dinheiro em espécie, especialmente em outros países, torna tudo ainda mais complicado”, afirma Cole Smith.
No continente americano, existem leis e práticas que buscam garantir uma proteção especial à liberdade religiosa para evitar possíveis ingerências indevidas do Estado em seus assuntos. Por esse motivo, limita-se a capacidade que qualquer Estado tem de investigar igrejas suspeitas de práticas irregulares. Isso pode tornar a situação especialmente favorável para aqueles que abusam dessas normas brandas para cometer crimes financeiros.
A vigilância de organizações religiosas por governos de países laicos como Guatemala, Estados Unidos, Peru e Brasil é mínima, segundo descobriu esta investigação após revisar a legislação destes e de outros países americanos. Nesses lugares, as igrejas gozam de isenções de impostos e não são obrigadas a prestar contas ao Estado. Como os estados não interferem em seus assuntos, as entidades religiosas têm maior liberdade para administrar suas finanças do que outras instituições sem fins lucrativos.
“Através de diferentes mecanismos, nós acabamos, sem querer, criando uma condição de intocabilidade a essas entidades nos Estados Unidos”, afirma Marci A. Hamilton, professora de estudos religiosos da Universidade de Pennsylvania e crítica da liberdade religiosa extrema.
“A razão pela qual grupos religiosos são tão convenientes para lavagem de dinheiro é que não precisam especificar nas declarações de impostos de onde o dinheiro veio nem o que fazem com ele”, afirma Hamilton. “Seus espaços públicos têm uma certa qualidade de caixa preta”.
Emilio Guerberoff, fiscal do foro Penal Econômico Federal da Argentina, afirmou ao Infobae, colaborador argentino da investigação: “Pode haver um choque de interesses entre a liberdade de culto religioso e a prevenção à lavagem de dinheiro, porque, ao receber doações anônimas através de dízimos, cujas origens podem não ser justificadas, as igrejas podem se tornar uma máquina perfeita de lavagem de dinheiro, sem que o dinheiro pareça ter uma origem criminosa, já que supostamente vem de seus seguidores”.
A igreja imaculada
Nos poucos casos em que líderes religiosos proeminentes foram condenados por lavagem de dinheiro, os chefes de suas organizações – e, na verdade, as próprias igrejas – raramente são igualmente investigados.
Em Utah, nos Estados Unidos, Jacob e Isaiah Kingston, membros de alto escalão de uma ramificação mórmon fundamentalista emergiram de uma batalha judicial com sentenças muito reduzidas após a maior fraude da história do estado. Um processo criminal federal recente em Salt Lake City, Utah, revelou um esquema fraudulento de mais de US$500 milhões, no qual o dinheiro era lavado através das contas da igreja, segundo reportagem da Columbia Journalism Investigations, membro desta colaboração.
O Serviço de Impostos Internos dos Estados Unidos (IRS) estimula a fabricação de combustível renovável, oferecendo incentivos fiscais para aqueles que o produzem no país. O esquema baseado em Utah consistia em simular a produção de combustível renovável, quando na verdade os Kingstons estavam comprando e vendendo o mesmo combustível renovável por meio de uma rede de empresas nacionais e internacionais. Após essa etapa, a empresa de Kingston, Washakie Renewable Energy, apresentava declarações falsas que a qualificava a receber pagamentos na forma de cheques do Tesouro dos Estados Unidos por seu trabalho de “produção” do combustível.
A Ordem, também conhecida como Sociedade Cooperativa do Condado de Davis, foi fundada em 1935 e é atualmente dirigida por Paul Kingston. Sua igreja, a Igreja de Cristo dos Últimos Dias – não confundir com a principal ramificação da igreja mórmon, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – é uma comunidade religiosa bastante unida. Estima-se que tem entre 2 mil e 6 mil membros que vivem na região de Salt Lake City. O grupo é conhecido por ser um dos poucos ramos mórmons que ainda pratica a poligamia.
Em 2019, os irmãos Jacob e Isaiah Kingston, dois altos membros da Ordem se declararam culpados de defraudar o governo federal dos Estados Unidos de US$ 511 milhões em pedidos indevidos de créditos de energia renovável. Eles foram condenados em abril de 2020.
Membros da organização implicados tiveram seus bens confiscados pelo Estado, mas receberam uma sentença mais curta em troca de testemunhar contra um cúmplice que não pertencia à igreja. Trata-se de Lev Dermen, um armenio-americano veterano do crime organizado com laços com altos funcionários dos governos da Turquia e de Belize e com funcionários públicos corruptos dos Estados Unidos.
Ganhos dessa fraude foram lavados por meio da igreja e de outras entidades, e correu por meio de contas em todo o mundo vinculadas às inúmeras conexões de Dermen em países como Turquia, Estados Unidos, México e Belize.
À medida que o caso se desenrolava na Corte Federal, antigos membros do grupo continuaram a revelar informações sobre outras fraudes. A seita religiosa foi acusada de roubar fundos de programas federais como a Solicitação Gratuita de Auxílio Federal para Estudantes (FAFSA) e o Programa de Alimentos para o Cuidado de Adultos (CACFA).
No passado, membros da Ordem também foram condenados por fraude à assistência social e por incesto.
Ex-fiéis consultados pela CJI, colaborador da investigação, associam esses delitos a uma doutrina conhecida como “sangrar a besta”, na qual os fiéis são incentivados a defraudar agentes externos ao grupo, como o governo dos Estados Unidos. Kent Johnson, porta-voz da Sociedade Cooperativa do Condado de Davis negou veementemente que sigam essa doutrina.
“A Cooperativa tem uma longa história de justamente o contrário (…) seus membros se veem frequentemente sob maior escrutínio, sujeitos a auditorias e investigações nove vezes mais que a média da população”, afirmou Johnson, citando uma pesquisa da igreja.
Os dois irmãos Kingston condenados nesse caso mais recente aceitaram a acusação que descreve uma conspiração de lavagem de dinheiro que envolveu a igreja e outras entidades relacionadas à Ordem. Durante o julgamento, não ficou provado se a Cooperativa – como organização – teria aprovado o uso de suas contas para cometer fraude.
Quando a CJI perguntou à igreja sobre seu papel no esquema de fraude, o porta-voz afirmou: “Que eu saiba, qualquer dinheiro pago a empresas de propriedade de membros da Cooperativa foi por serviços legítimos prestados ou para devolver o dinheiro emprestado ao Sr. (Jacob) Kingston ou entidades relacionadas à WRE”.
Mesmo os documentos judiciais já revelando origem ilícita de alguns dos fundos da Ordem, os procuradores pretendem investigar ainda mais a fundo. O escritório da procuradoria dos Estados Unidos em Salt Lake City acredita que os próximos passos da investigação “envolverão rastrear e seguir os ingressos através dessas contas bancárias de entidades relacionadas à Ordem”, de acordo com sua porta-voz, Melodie Rydalch.
Até o momento, a Ordem segue tendo suas proteções constitucionais garantidas assim como qualquer grupo religioso com status oficial de igreja no país.
Dois membros do alto escalão da Ordem que usaram contas bancárias da igreja para lavar o dinheiro da fraude de energia renovável estão cumprindo pena. Nem o líder máximo do grupo, Paul Kingston, nem a própria igreja foram implicados legalmente. A igreja segue aparecendo na lista de igrejas isentas de impostos do Serviço de Impostos Internos dos Estados Unidos (IRS). Perguntado sobre isso, o IRS respondeu que a lei federal impede a instituição de comentar publicamente sobre seus contribuintes.
Portanto, a Igreja de Cristo nos Últimos Dias pode continuar atestando a seus doadores que é uma organização isenta de impostos registrada no IRS e que, por se tratar de uma igreja, pode receber doações sem precisar prestar contas de suas finanças ao governo.
A santa defesa
As provas que levaram os dois pastores da República Dominicana e da Colômbia a serem condenados – mencionados no início da reportagem – foram meticulosamente recolhidas desde março de 2013 por procuradores colombianos de atuação contra o crime organizado.
Segundo documentos apresentados em audiência, a dupla usou do pretexto das doações dos fiéis em múltiplas ocasiões para explicar por que Jorge Mercedes Cedeño levava grandes quantias de dinheiro em espécie. Em uma ocasião, a polícia de El Poblado, um bairro rico de Medellín, segunda maior cidade da Colômbia, deteve o “Pastor Jorge” da República Dominicana quando descobriu que este carregava 300 milhões de pesos colombianos em espécie (cerca de US$ 110 mil dólares na época). Mas ele foi rapidamente liberado depois que Arce Ortiz ligou para seus contatos na polícia e corroborou a versão de seu companheiro pastor de que o dinheiro provinha de doações.
Apesar da solidez do caso, quando chegou o momento da sentença, os advogados de defesa dos dois homens trouxeram a tona suas credenciais religiosas, pedindo clemência. O advogado de Arce Ortiz pediu que sua “qualidade de bispo da Igreja Anglicana” fosse levada em conta a seu favor. Mas Arce Ortiz nunca foi bispo da corrente principal da igreja anglicana – fato que nem a corte nem a imprensa tinham em conta na época.
O colombiano Arce Ortiz, conhecido como “El Obispo” (O Bispo), se apresentava como um líder ativo na igreja de Víctor Manuel Cruz Blanco. Trata-se da Provincia Iglesia Anglicana del Caribe y La Nueva Granada, uma denominação derivada da igreja anglicana cuja história remonta a uma pequena paróquia em Indiana. A igreja informou publicamente ter excomungado Arce Ortiz por heresia e falso arrependimento em fevereiro de 2012 – um ano antes do início das investigações pelas autoridades colombianas.
Outra credencial que Arce Ortiz apresentou na corte como prova de suas afiliações religiosas – um “cartão” emitido pela Igreja Anglicana Misionera Mundial – refere-se a uma igreja que parece ter sido criada por ele próprio.
Por sua vez, os advogados do “Pastor Jorge” argumentaram que o juiz deveria mostrar clemência com o acusado, uma vez que ele não era “um homem com tendências a cometer delitos”, baseado no fato comprovado de que ele é “um missionário evangelista em seu próprio país”.
Os investigadores tinham vastas provas de que ambos os homens aproveitavam-se de suas funções de pastores das congregações, evangelizando e dirigindo missões humanitárias. Mesmo assim, funcionários públicos dominicanos esforçaram-se para mostrar que Jorge Mercedes Cedeño nunca esteve relacionado com o estabelecimento religioso mencionado no caso.
“Pode ser que tenha tido algo muito pontual, individual, alguma imitação, mas ele não faz parte de nenhuma das igrejas organizadas”, afirmou Francisco Domínguez Brito, então Procurador-Geral da República Dominicana, em uma conferência de imprensa em 2015, logo após o pastor ter sido condenado na Colômbia.
Segundo as normas jurídicas e sociais da maioria dos países da América, incluindo a República Dominicana, não é exigida nenhuma afiliação ou comprovação formal para verificar se líderes religiosos pertencem, de fato, a uma igreja, a não ser as normas internas das entidades.
Narcos, políticos e pastores
Esta investigação também constatou que na costa de San Marcos, na Guatemala, onde o narcotráfico é poderoso e constitui uma das principais atividades econômicas, existe uma estreita relação entre esse fenômeno e alguns pastores evangélicos.
Há narcotraficantes evangélicos que financiam igrejas, que são eles mesmos pastores dessas igrejas ou que recrutam pastores para utilizá-los em suas organizações.
Juan Alberto Ortiz López, conhecido como “Chamalé”, dominou o tráfico de drogas na costa pacífica da Guatemala por duas décadas. Menos conhecido era seu papel de mecenas religioso. Os pastores a quem enviava dinheiro ou materiais para erguer novos templos lhe deram o apelido de “Irmão Juan”.
Ele foi especialmente generoso com as igrejas Torre Fuerte, uma rede de igrejas do pastor Noé Mazariegos que se estendia de San Marcos até o estado mexicano de Chiapas. Segundo a procuradoria da Guatemala, Mazariegos, conhecido como “O Apóstolo”, fez parte da organização de Chamalé e foi acusado de ordenar o assassinato de seu cunhado e de outras pessoas que o acompanhavam. Chamalé e sua organização mafiosa exportaram ao menos 144 mil toneladas de cocaína, segundo a justiça estadunidense, que o condenou em 2014.
O pastor Mazariegos “tornou-se seu braço direito, seu conselheiro para assuntos religiosos e de negócios”, explicou a Nómada, colaborador da investigação na Guatemala, um jornalista e ativista da região, que pediu anonimato por motivos de segurança. A proximidade de Chamalé com a religião o ajudou a construir sua rota até o poder. Segundo a investigação de Nómada, o traficante de drogas participava frequentemente de eventos cristãos, durante os quais se reunia com prefeitos, políticos e funcionários públicos da região. Um assessor de campanha de um candidato presidencial nas eleições de 2007, que pediu para não ser identificado, contou que seu candidato chegou a assistir a um ato religioso em Tapachula, no México, a convite de Chamalé.
Chamalé tirou proveito de suas conexões com as igrejas durante seu julgamento nos Estados Unidos. Religiosos o defenderam, alegando que ele havia ajudado suas igrejas e pedindo que fosse libertado. O pastor Raúl Timoteo Méndez López testemunhou que havia recebido uma ajuda significativa do narcotraficante em benefício de sua congregação.
“Creio e estou convencido de que ele é um ministro de Deus, que é um homem que Deus ergueu para servir a seu povo”, disse Méndez López em uma audiência em julho de 2015.
Mesmo quando já se sabia que Chamalé havia sido declarado culpado, uma pilha de cartas e testemunhos chegou à audiência, dando fé da religiosidade do traficante de drogas e de seu papel crucial para a religião local.
Enquanto Chamalé nunca realmente dirigiu uma igreja do altar, um de seus principais sucessores, Érick Súñiga, conhecido como “El Pocho”, foi, ao mesmo, tempo pastor, político e narcotraficante.
Súñiga já era um narcotraficante em ascensão quando se converteu à igreja Bethania e, com seu apoio, foi eleito prefeito de Ayutla, município no departamento de San Marcos, em 2008. Ainda enquanto prefeito, em 2012, ele criou sua própria igreja chamada Ministérios Restauração e Paz, onde pregava. Seis anos depois, após a visita de um pastor estrangeiro que profetizou que ele deveria deixar de pregar na igreja local para seguir seus objetivos políticos abençoados por Deus, Súñiga deixou de pregar regularmente em sua igreja. No entanto, segundo fontes consultadas por Nómada no local, esta seguiu sendo o centro de sua doutrina e o ajudando a consolidar seu poder na região.
Súñiga, “El Pocho”, entregou-se às autoridades dos Estados Unidos e foi acusado diante de um tribunal federal no Texas de levar cocaína aos Estados Unidos desde 2008.
“Prefeito guatemalteca corrupto acusado no Distrito Leste do Texas”, informa o comunicado de imprensa do Departamento de Justiça dos Estados Unidos de 19 de dezembro de 2019. “O Tesouro aplica sanção um prefeito guatemalteca”, escreveu a Embaixada dos Estados Unidos na Guatemala. A procuradora-geral da Guatemala, María Consuelo Porras, até viajou à cidade de Plano, no Texas, em janeiro, e descreveu à imprensa como as investigações haviam demonstrado que o homem usava seus funcionários na prefeitura para atender à sua rede de tráfico de drogas. No entanto, nem durante o processo judicial, nem na acusação, foi mencionado que Súñiga era pastor, dirigente de uma igreja ou fundador de uma religião.
Érick Súñiga morreu em abril de 2020 enquanto sob custódia das autoridades americanas. Embora a causa da morte não tenha sido informada oficialmente, sabe-se que o narcotraficante e pastor tinha câncer de pâncreas. No momento de sua morte, a igreja Restauração e Paz, em Ayutla, continuava realizando cultos e pregações de seus pastores.
Os pastores e o narcotráfico da Guatemala não se limitavam apenas à costa do Pacífico. Jorge René García Noguera, conhecido como JR, emergiu como narcotraficante de uma nova geração, discreto e com um negócio de exportação de frutas e leite, na região de Zacapa, a cerca de 150 quilômetros da capital.
Estudou para ser pastor, publicou três livros sobre o cristianismo e chegou a criar sua própria produtora multimídia de conteúdos cristãos – a EnÉl, ou N’Ele, em português –, que converteu, em 2017, em ministério, durante uma celebração pública com a presença de vários dos principais pastores guatemaltecas. Com o ministério, cultivou relações com outras igrejas do país, como a Chuvas da Graça, e igrejas no exterior, entre elas uma fundada por seus familiares no Peru.
Mas seu projeto não durou muito. No fim do mesmo ano, um tribunal da Flórida o acusou de ser intermediário de narcotraficantes colombianos e mexicanos na rede de tráfico de cocaína para o norte e pediu sua extradição. JR se escondeu por um tempo e a EnÉl deixou de aparecer publicamente até desaparecer. Um ano depois, ele se entregou voluntariamente nos Estados Unidos e hoje cumpre uma sentença de 20 anos, que pode ser reduzida caso ele colabore com a justiça.
Em seu julgamento, parentes cristãos e pastores pediram clemência ao tribunal e juraram que ele era um homem bom e que havia encontrado Deus em 2013. No entanto, ao aceitar a acusação, JR admitiu que havia traficado cocaína até 2017. (Leia a história de JR)
Perguntado sobre a possibilidade de que os narcotraficantes guatemaltecas estejam usando igrejas diretamente para lavar dinheiro, o ex-Ministro do Interior Francisco Rivas respondeu que “é provável que isso esteja acontecendo, pela forma como essas igrejas são administradas e por algumas informações que recebemos… mas não investigamos isso como um fenômeno criminal”.
Chama a atenção o fato de que, na Guatemala, apenas um líder religioso tenha sido condenado por lavagem de dinheiro através de sua igreja. Saturnino Molina, um frade franciscano de El Salvador, que foi pego tentando ir até Israel com uma soma de mais de US$16 mil em notas de dólar, euro e quetzal. Apesar de ter sido condenado, o frade sempre alegou que o dinheiro não declarado era fruto da venda de rosários e das doações de seus fiéis.
As regras
Em muitos lugares, para começar uma igreja basta dizer que ela existe. Para evitar interferir em liberdades religiosas, muitos governos são ambíguos ao definir o que realmente significa constituir uma igreja. Em alguns países, como os Estados Unidos, o termo legal “igreja” se refere a congregações de todas as crenças.
Alguns países como a Costa Rica, a Argentina, o México e a Colômbia exigem que as igrejas sejam registradas. Outros, como Estados Unidos, Peru, Porto Rico e Guatemala, não. E em alguns outros, como o Brasil, os requisitos variam de acordo com o tamanho da igreja. Em muitos países latino-americanos, a igreja católica é regulada por códigos especiais, devido à sua longa história na região.
No entanto, em diversos países, as igrejas devem registrar sua existência junto às autoridades competentes para poder atuar como uma entidade legalmente constituída, se seus líderes assim o quiserem. Na Colômbia, as igrejas devem ser registradas na Direção de Assuntos Religiosos do Ministério do Interior; nos Estados Unidos, no Serviço de Impostos Internos (IRS); no Peru, no Ministério da Justiça e Direitos Humanos. Registrar igrejas costuma ser um processo sem dificuldades. Ao inscrever-se, as igrejas recebem um número de identificação único e um certificado de isenção de impostos.
Na Argentina, as igrejas inscritas oficialmente no Registro Nacional de Cultos são isentas de pagamento de impostos. Em julho de 2019, a Administração Federal de Receitas Públicas (AFIP) simplificou o processo para obter o certificado de isenção de imposto de renda e estabeleceu que já não era preciso apresentar balanços anuais nem declarações juramentadas, como se exigia anteriormente.
Nos Estados Unidos, as igrejas são automaticamente isentas de impostos, mesmo quando não estão cadastradas na autoridade federal de impostos. Mas a certificação permite que elas provem sua isenção aos doadores. Em geral, mesmo quando estão registradas, as igrejas possuem exigências de declaração financeira diferenciadas, geralmente menores que outras organizações sem fins lucrativos, já que o propósito religioso é considerado um direito fundamental.
Mais recentemente, alguns países, como Argentina, Uruguai e Guatemala, estabeleceram normas para que as igrejas previnam ou detectem esquemas de lavagem de dinheiro, de acordo com as leis de combate a esse crime em cada país. Essas medidas podem incluir a exigência de que as igrejas identifiquem doadores acima de uma certa quantia, que conheçam a origem do dinheiro doado e que denunciem transações suspeitas aos órgãos governamentais.
Apesar da existência desses mecanismos de controle, na prática, a supervisão de seu cumprimento tem sido relativa. Na Argentina, até recentemente, entidades religiosas não eram consideradas pela Unidade de Informação Financeira (UIF) como um setor de “alto risco” para a prevenção de lavagem de dinheiro. Isso significa que, ao menos que houvesse Relatórios de Operações Suspeitas (ROS) de entidades bancárias, igrejas eram fiscalizadas apenas por controles de rotina, junto a outros setores. De 2010 a 2020, houve apenas uma sanção administrativa do órgão governamental contra lavagem de dinheiro contra uma instituição religiosa.
Em fevereiro de 2019, após um processo ter sido aberto cinco anos antes, a Igreja Universal do Reino de Deus e três integrantes de sua administração receberam uma multa de 240 mil pesos argentinos (cerca de US$6,2 mil atualmente) – tanto a instituição como cada um desses membros – pelo não cumprimento às normas de prevenção de lavagem de dinheiro.
No entanto, essa política de prevenção foi revisada depois que o presidente argentino Alberto Fernández assumiu o cargo em dezembro de 2019. Sob a direção de seu novo chefe, Carlos Cruz, a UIF mudou de direção. “As igrejas estão sujeitas a um controle proativo, e, com os novos contornos da política criminal do órgão, vamos supervisionar mais de perto as movimentações de dinheiro dessas entidades, já que algumas congregações têm sido utilizadas para lavar dinheiro”, afirmou o diretor da UIF, consultado pela investigação. “É um assunto não só da UIF da Argentina, mas também de outros países que procedem com atenção”.
Na Guatemala, quem supervisiona entidades sem fins lucrativos – entre elas, as igrejas – que recebem ou enviam dinheiro ao exterior é a Intendência de Verificação Especial (IVE). No entanto, até o fim de 2019, apenas 156 entidades do tipo reportavam suas atividades à IVE – enquanto, contando apenas as igrejas legalmente registradas no país, existem cerca de 3.200. Entre 2014 e 2019, a IVE recebeu nove relatórios de transações suspeitas de todas as organizações sem fins lucrativos que supervisiona, nenhuma das quais resultou em uma denúncia à procuradoria por lavagem de dinheiro, segundo dados da IVE.
Algumas igrejas operam informalmente, motivo pelo qual não se sabe a quantidade exata de entidades religiosas em todo o continente americano. Em geral, não existem diretorias oficiais das entidades religiosas nos países, o que dificulta ainda mais o cálculo em nível continental. No entanto, o número de igrejas registradas nas agências de arrecadação de impostos tem aumentado em países.
Nos Estados Unidos, há 1.327.714 organizações religiosas, beneficentes e similares registradas no Serviço de Impostos Internos (IRS), segundo os dados mais recentes disponíveis, de 2018. Em 2001, havia 865 mil. Não há informação mais detalhada. Em resposta a um pedido de informação da Columbia Journalism Investigations, o IRS afirmou que não tem disponíveis dados de entidades registradas com status de igreja.
No Brasil, o número de igrejas registradas duplicou em 15 anos, chegando a 25.022 em 2018, segundo informação obtida pela Agência Pública, colaboradora desta investigação. Na Argentina, segundo resposta obtida pelo Infobae a um pedido de informação pública, existem 6.330 entidades religiosas inscritas no Registro Nacional de Cultos, dos quais um terço, 2.096, foram registradas nos últimos 10 anos. O número de inscrições em 2019 foi o dobro do que em 2010.
É importante destacar que o número de igrejas é distorcido pelo abuso de registros: organizações sem fins lucrativos, empresas e outras entidades se registram falsamente como igrejas. Por exemplo, em 2012, a polícia brasileira deteve um grupo criminoso que utilizou uma conta bancária de uma igreja para transferir R$400 milhões procedentes de crimes contra o sistema financeiro. Segundo o comunicado de imprensa da Polícia Federal, a Igreja Ação e Distribuição só existia como fachada legal. Nunca teve local – no endereço indicado existia uma academia – nem seguidores. O comunicado afirma que “a associação religiosa foi criada por gozar de imunidade tributária, o que, diminuiria as probabilidades de fiscalização, na visão dos integrantes do grupo”. (Leia o texto Igreja Universal é investigada por movimentações bancárias suspeitas na Argentina)
Mesmo entre igrejas que parecem ter seguidores e uma doutrina, os tipos de atividades consideradas como “religiosas” não são bem definidos. A permissividade da categoria permitiu argumentos excêntricos nos tribunais estadunidenses. Uma mulher alegou diante de um tribunal que sua rede de prostituição devia ser protegida da intervenção legal, uma vez que era fundada em uma crença religiosa.
Em 2016, um tribunal estadunidense condenou a líder do Templo da Deusa Phoenix (Phoenix Goddess Temple), Tracy Elise, por prostituição e lavagem de dinheiro. Mas, enquanto as autoridades afirmavam que sua casa de prostituição usava a religião como fachada, Elise insistiu que a condenação interferia no seu direito fundamental à liberdade religiosa, uma vez que “foi condenada por crimes derivados das práticas religiosas que ela havia declarado”.
O Templo da Deusa em Phoenix já não existe, mas a luta de Elise continua. Em liberdade condicional após ter cumprido parte da pena, ela continua apelando contra a sentença. Este foi um dos poucos casos recentes de investigação a uma igreja nos Estados Unidos.
Segundo Rob Boston, consultor-sênior da organização Americanos Unidos pela Separação Igreja-Estado, é mais provável que agências governamentais investiguem igrejas não convencionais. “Alguém que inventa uma igreja falsa para encobrir atividades ilegais é diferente de igrejas legítimas que estão cometendo irregularidades”, afirma. Sobre as operações fraudulentas, diz “essas não vão colar”.
Mesmo nos casos menos frequentes em que respeitados pastores de organizações religiosas muito conhecidas foram alvos de investigações judiciais, é possível perceber a quantidade de salvaguardas existentes com as atuais normas de proteção à autonomia e às liberdades das igrejas. (Leia o texto: Líderes religiosos sob suspeita de finanças pouco santas)
Os governos sabem que existem organizações religiosas e igrejas que abusam da proteção legal que recebem para cometer crimes graves. Os mais de 60 casos judiciais e investigações oficiais analisados por esta colaboração revelam que isso vem acontecendo. Quão disseminados são esses abusos? Não sabemos. De acordo com dez fontes diferentes consultadas para esta reportagem, as informações e dados sobre irregularidades financeiras cometidas por instituições religiosas é muito escassa, e muitos crimes podem passar despercebidos.
Até o momento, a maioria dos governos preferiu não aprovar leis mais duras para examinar de perto as organizações religiosas, provavelmente porque não querem colocar em risco as proteções conquistadas a duras penas para que as organizações religiosas se desenvolvam livremente. Estão ainda menos dispostos a correr esse risco agora que existem organizações religiosas envolvidas no poder político em vários desses países.
O paradoxo é que, ao proteger os direitos das igrejas e de seus líderes ao ponto de permitir que abusos fiquem impunes, muitos verdadeiros fiéis ficam desprotegidos de enganadores que usam sua fé para enfraquecer os mesmos princípios em que dizem acreditar.
Uma cena resume essa contradição: o espanto e as lágrimas dos seguidores dominicanos da igreja Rugido do Leão quando descobriram que seus pastores, em quem tanto confiavam, eram na verdade laranjas de uma organização do mais terrível crime organizado.
A investigação Paraísos de Dinheiro e Fé foi realizada em conjunto pelo programa em jornalismo investigativo da Universidade Columbia (Columbia Journalism Investigations, conhecido como CJI em inglês), Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo (CLIP, na sigla em espanhol), Mexicanos Contra la Corrupción y la Impunidad (México), Nómada (Guatemala), Canal 13 Noticias (Costa Rica), IDL-Reporteros (Perú), Infobae (Argentina), Agência Pública (Brasil), Folha de S.Paulo (Brasil), La Diaria (Uruguay), El Tiempo (Colômbia) e OCCRP (Projeto de Relatório sobre Crime Organizado e Corrupção, do inglês), com o apoio de Seattle International Foundation.