País mais perigoso do mundo para defensores ambientais, o Brasil não ratificou o Acordo de Escazú. Pacto fortaleceria a participação, a transparência e a segurança públicas em pautas sociais e de proteção da natureza. A negligência favorece a destruição ecológica e a violência contra indígenas, quilombolas e outras populações. Quando for aprovado, o arranjo demandará melhorias na legislação nacional.
Nos estados de Roraima e do Amazonas, terras Yanomami são invadidas por garimpeiros desde 1987. Aprovada um ano depois, a Constituição Federal de 1988 firmou uma rota democrática e direitos socioambientais no país recém saído da Ditadura Militar. Mas três décadas após a ocupação dos territórios, os crimes prosseguem e são fortalecidos no governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro (sem partido).
Entidades civis e Ministério Público Federal apontam que até 25 mil criminosos escavam dia e noite em busca de ouro e outros minerais naquele território. Florestas e cursos d’água são destruídos e contaminados. Rios como o Mucajaí foram arrancados de seu leito. Criminosos comemoraram a façanha nas Redes Sociais
O garimpo também espalha o perigoso mercúrio por terras e águas e dissemina doenças entre populações que antes viviam saudáveis nas florestas. Famílias inteiras padecem. Anciãos guardiões de culturas e crianças que garantiriam o futuro das etnias são vitimadas pela Covid-19, levada à região por meliantes.
A atividade ilegal cresceu 30% no território Yanomami em 2020, apesar da pandemia. Área semelhante a de 500 campos de futebol foi desmatada no mesmo período. Na região também vivem povos isolados, sem contato direto com a sociedade moderna e outras populações autóctones.
O flagelo dos Yanomami não é isolado e espelha o tratamento de governos brasileiros com indígenas e outras minorias, cujo modo de vida mantém ambientes e culturas ancestrais. Especialistas alertam que os conflitos ganham força porque conquistas legais desde a redemocratização são desmanteladas e criminosos seguem impunes.
Coordenador da Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia, Ricardo Verdum lembra que governos anteriores atuavam com mais atenção às normativas federais e até ao lado de movimentos indígenas contra o saque de recursos naturais em territórios protegidos em lei.
A entidade criada em 1955 é uma das mais antigas do país dedicada às Ciências Sociais. Na década de 1980 o antropólogo já atuava para reduzir embates entre agropecuaristas, madeireiros e nativos. À época, o primeiro indígena eleito deputado federal, Mário Juruna (1943-2002), estabeleceu uma Comissão Permanente do Índio no Congresso Nacional.
Mas hoje predomina a regressão de direitos, com forças conservadoras ocupando órgãos e funções estatais. Governos de Esquerda também minaram relações com movimentos socioambientais ao retomar grandes obras de infraestrutura na Amazônia, como a da usina de Belo Monte. Muitos projetos foram paridos na Ditadura Militar (1964-1985).
“E o governo atual é omisso e incentiva conflitos especialmente territoriais com indígenas. Não há movimentação significativa para conter as disputas, só ações para não ficar tão evidente que o projeto é desmontar tudo que vinha desde a Constituição de 1988. A ‘presunção de impunidade’ pode se tornar algo socialmente epidêmico em relação aos povos indígenas no país”, ressaltou Verdum.
Outro fruto do temeroso cenário político cultivado pelo governo de Jair Bolsonaro é o escanteio que o Brasil impôs ao chamado Acordo de Escazú. Assim o país desperdiça uma chance para reforçar sua legislação e aumentar a efetividade de ações contra crimes que atingem quem defende ambientes naturais e suas populações.
“O Brasil perde uma oportunidade para ter um instrumento que fortaleceria sua democracia e direito ambiental. Quanto mais países ratificarem Escazú, maiores as garantias de direitos para defensores ambientais em uma região muito violenta”, avaliou Ana Gabriela Ferreira, coordenadora de Acesso à Informação da Artigo 19.
A ONG é o braço brasileiro da entidade criada em 1987, em Londres (Inglaterra), que atua para ampliar direitos à liberdade de expressão e de acesso à informação no mundo todo. Sua alcunha remete ao 19º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas.
BRASIL NA CONTRAMÃO REGIONAL
Escazú foi construído na América Latina e Caribe para resguardar a vida e os direitos de defensores de direitos humanos e conservacionistas. Foi baseado em princípios firmados desde 1992 na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio de Janeiro). O Acordo entrará em vigor em 22 de abril nos 12 países que o ratificaram.
Ambientalistas, indígenas e quilombolas, pesquisadores, servidores públicos e quem mais levantar a voz contra crimes ou desmandos políticos e econômicos são ameaçados e mortos na região mais violenta do mundo para ativistas. Por isso Escazú traz uma base legislativa para que as 33 nações latino-americanas e caribenhas assegurem salvaguardas a quem luta pelo meio ambiente.
A medida é mais do que bem vinda. Afinal, o Brasil é o terceiro país no planeta onde mais ativistas foram assassinados em 2019, com 24 mortos. Dez eram indígenas. Os números são da ONG Global Witness. No mundo todo, 212 indígenas, ecologistas, camponeses e outros defensores de terras e ambientes foram eliminados naquele ano. Em 2018, foram pelo menos 20 mortos no Brasil.
Por isso o pacto pede que governos ajam preventivamente à violência e que investiguem e punam com mais rigor ameaças e ataques. A ideia é reduzir os alarmantes níveis de impunidade que beneficiam os bandidos. Escazú também prevê que pessoas e grupos mais vulneráveis tenham preferência no acesso a direitos para seguirem vivos.
Moldado à realidade da região, o Acordo contribui para o fortalecimento das estruturas normativas e das capacidades dos Estados nacionais. Também fornece ferramentas para que os próprios defensores possam fazer valer seus direitos, ressaltou o chefe da Unidade de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), Carlos de Miguel.
A entidade conectada às Nações Unidas foi a principal articuladora da construção e da aprovação regionais do texto de Escazú. A negociação durou 6 anos.
“El mejor modo de tratar las cuestiones ambientales es con la participación de todos aquellos afectados y que esta participación debe ser informada. Si la ciudadanía conoce las consecuencias de la degradación ambiental, las opciones para evitarla, los beneficios de cuidar nuestra casa común, se convierte en un motor de cambio, aliado de los gobiernos, para lograr el desarrollo sostenible”, ressaltou Carlos de Miguel.
O Acordo, ainda, contribui de forma geral para proteger o direito de cada pessoa de viver em um meio ambiente saudável associado a um desenvolvimento realmente sustentável. A diretriz é semelhante a trechos da Constituição Brasileira, mas o país não se mobilizou para ratificar um pacto que ajudou a construir.
Escazú foi assinado pelo Brasil em setembro de 2018, no governo de Michel Temer. Carlos Miguel, da Cepal, reconhece que pontos do tratado foram melhorados inclusive durante uma reunião em Brasília (DF) por uma “brilhante condução do Ministério das Relações Exteriores do Brasil”, então comandado pelo ex-senador Aloysio Nunes.
Puro contraste com a atuação do chanceler Ernesto Araújo. Indicado por Jair Bolsonaro, foi um adepto de teorias conspiratórias recheadas de comunistas e outros inimigos imaginários. Foi afastado em março deste ano por forte pressão política. Alinhado ao governo, emperrava acordos políticos e comerciais, incluindo a compra de vacinas para a Covid-19.
Também não apoiou a proposta para um tratado que fortaleceria a cooperação internacional na prevenção e combate a novas pandemias, bloqueou arranjos para conter o uso de plásticos, reduzir o desmatamento e as perdas de biodiversidade, enfrentar a crise do clima e respeitar direitos das mulheres, como à interrupção da gravidez.
Pouco antes de deixar o cargo, Araújo foi interpelado em uma audiência pública da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados pelo parlamentar federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), mas o então ministro das Relações Exteriores silenciou quanto à ratificação do Acordo de Escazú. Todavia, as pressões políticas não têm hora para acabar.
“O Brasil tem a maior riqueza socioambiental do planeta e seguiremos provocando o governo para que o ratifique. Com ele o país terá melhor governança e solidificará ferramentas democráticas. Escazú é debatido em outras esferas e pode se tornar um pacto para todo o mundo civilizado e não só para a América Latina e Caribe”, destacou Agostinho, ex-presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados.
Depois de assinados, acordos internacionais são ratificados no Brasil com articulações entre os poderes Executivo e Legislativo. O processo pode se estender. O país assinou a Convenção de Minamata para eliminar o mercúrio de atividades produtivas em 2013, mas o ratificou cinco anos depois, em 2018. Já a Convenção de Roterdã sobre Agrotóxicos e Substâncias Químicas Perigosas foi firmada em 1998 e promulgada apenas em 2005.
Mas mesmo antes de ser legalizado no país, Escazú já influencia mobilizações de entidades civis e até argumentações do Supremo Tribunal Federal. No julgamento de uma ação em maio de 2019, a ministra Rosa Weber reconheceu que fortalecer a participação pública, como prega o Acordo, é o melhor caminho para a proteção social e ambiental na América Latina e Caribe.
“Mesmo não estando em vigência e ainda não tendo aplicações legislativas formais no Brasil, o Acordo de Escazú já é uma fonte de Direito que pode ser usada como parte de ações e decisões judiciais”, avaliou o pesquisador Rubens Born, colaborador para Desenvolvimento Sustentável, Governança e Meio Ambiente da Fundação Grupo Esquel Brasil.
A entidade congrega organizações não-governamentais para fortalecer a cidadania e construir novos modelos econômicos para que a América Latina tenha um desenvolvimento mais sustentável.
DEMOCRACIA EM RISCO, DESTRUIÇÃO EM ALTA
Egresso das forças militares, Jair Bolsonaro ocupou cargos políticos por três décadas sem apresentar qualquer proposta relevante para o país. Sua atuação no parlamento, na campanha eleitoral e como Presidente da República é marcada por ofensas a minorias étnicas, mulheres e homossexuais. Nunca foi condenado pelos crimes que, conforme juristas, segue cometendo.
Eleito em 2018, tornou-se o primeiro presidente brasileiro com afrontas a direitos humanos analisadas pelo Tribunal de Haia (Holanda). A corte penal internacional avalia denúncias sobre crimes contra a humanidade e incitação ao genocídio de povos indígenas que teriam sido cometidos por Jair Bolsonaro.
Uma análise da organização não governamental SOS Mata Atlântica mostrou que o então candidato Bolsonaro tinha a pior plataforma eleitoral para o campo socioambiental. Em pesquisas de opinião pública, um alto percentual de brasileiros espera maior proteção da natureza de governantes, mas os índices ainda não se refletem nas urnas.
Em março de 2019 e já ostentando a faixa de Presidente da República, Jair Bolsonaro afirmou a lideranças conservadoras num jantar em Washington, com Donald Trump ainda na presidência dos Estados Unidos, que antes de construir algo para o povo brasileiro seria preciso “desconstruir muita coisa”.
“Eu sempre sonhei em libertar o Brasil da ideologia nefasta de esquerda. O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer”, afirmou na ocasião, conforme o jornal O Globo.
Dito e feito, seu governo amparado em militares saudosos da Ditadura e fanáticos religiosos arrasa com a legislação socioambiental, joga por terra mecanismos de controle do desmatamento, incentiva criminosos à rapina de recursos naturais e assiste impassível à mortandade de centenas de milhares de brasileiros pela Covid-19.
“Os sinais apontavam desde as eleições para um governo anti-ambiental, com atuação contrária a tudo que Escazú pede. Toda semana há retrocessos em várias áreas e direitos. Nossa democracia está em risco e isso pede sua defesa, enquanto há mecanismos para isso”, ressaltou Yumna Ghani, do Programa de Acesso à Informação da Artigo 19.
Levantamento do portal Poder 360 revelou que 11 mil militares da ativa e da reserva ocupam cargos no governo. Executivo e Parlamento federais mantêm isenção de impostos e outras benesses para igrejas. Ministro do Supremo Tribunal Federal indicado por Bolsonaro, Kassio Nunes Marques, votou pela liberação de cultos em plena pandemia.
Em queda desde 2004, o desmatamento da Amazônia sobe desde 2013 e agora bate recordes. Fruto da falta de coordenação federal e de modelos econômicos sustentáveis na região. Ano passado, 11.100 km2 foram destruídos, área quase do tamanho do município de Manaus, capital do Amazonas. A taxa mantém o Brasil na liderança mundial do desflorestamento.
Somando as perdas de vegetação em todas as regiões, o país perdeu 17 mil Km2 de verde em 2020. O desmate é três vezes maior que o do segundo colocado, a República Democrática do Congo (África). Bolívia, Indonésia e Peru também puxam a devastação nos trópicos, onde tombaram 122 mil Km2 de florestas no período.
O relatório da Global Forest Watch mostra que incêndios dispararam no Brasil pelas mãos de fazendeiros preparando áreas desmatadas para agricultura ou pecuária. A situação se reflete na tragédia que atingiu o Pantanal no ano passado, quando agropecuaristas atearam fogo na vegetação ressecada pela estiagem para renovar pastagens.
Um balanço da Universidade Federal do Rio de Janeiro aponta que um terço da maior planície inundável do planeta virou cinzas. Reservas ecológicas e indígenas foram quase que totalmente queimadas. A região é um grande abrigo de onças-pintadas na América do Sul. Não há ações do governo para que a tragédia não se repita este ano, de mais seca.
A sanha destruidora recebe protestos públicos e ações judiciais, ainda inócuos diante dos desmandos governamentais. Duzentas entidades civis pediram no início de abril ao governo de Joe Biden para que mantenha uma postura crítica e não sele acordos com o Brasil pelos elevados riscos ao meio ambiente, aos direitos humanos e à democracia.
As ONGs temem que um aperto de mãos entre americanos e brasileiros supostamente para a proteção da Amazônia seja anunciado na cúpula sobre clima convocada por Biden para o fim de abril, coincidindo com a entrada em vigor do Acordo de Escazú.
As entidades ressaltam que tratativas como essas devem envolver sociedade, governos subnacionais, academia e setor privado. Além disso, devem ser precedidas pela redução do desmatamento e das perdas de biodiversidade e pelo recuo em retrocessos socioambientais apoiados pelo Congresso Nacional.
“Negociações e acordos que não respeitem tais pré-requisitos são um endosso à tragédia humanitária e ao retrocesso ambiental e civilizatório imposto por Bolsonaro. Não é razoável esperar que as soluções para a Amazônia e seus povos venham de negociações feitas a portas fechadas com seu pior inimigo”, ressaltaram as ONGs.
A devastação em curso também ameaça de morte outras legislações protetoras de populações indígenas e tradicionais, encolheu a participação da população civil no desenho de políticas públicas e as estruturas e orçamentos de órgãos de fiscalização e controle ambiental.
Enfraquecer o licenciamento de obras e outros projetos que impactam povos e natureza, legalizar terras públicas griladas no país e liberar a mineração, o garimpo e outras atividades econômicas em terras indígenas são algumas das prioridades que o Governo Brasileiro listou ao Congresso Nacional.
A mineração em territórios de índios é prevista na Constituição Federal, mas até hoje não foi regulada em lei pelas ameaças que traz a 255 diferentes povos que somam quase 900 mil pessoas no país. A grande maioria de suas terras está na Amazônia. Enquanto isso, membros do governo federal trocam figurinhas com lobistas setoriais.
Jair Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, são próximos de garimpeiros e madeireiros ilegais que criticam a fiscalização ambiental. O vice-presidente, Hamilton Mourão, e o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, articulam a mineração em terras indígenas com entidades e parlamentares ligados à mineração.
Em março, durante uma reunião fora da agenda oficial com madeireiros e presidência da Fundação Nacional do Índio, Jair Bolsonaro incentivou indígenas Kayapó, do sul do Pará, a pressionarem por mineração e agronegócio em suas terras, contou o Observatório da Mineração. Tais ações do Executivo Federal promovem conflitos e ignoram tragédias históricas.
No mesmo mês, garimpeiros e indígenas aliciadas por bandidos depredaram o prédio da associação de mulheres Munduruku em Jacareacanga, no Pará. O ataque tentava calar grupos contrários à mineração e ao garimpo em terras indígenas. Os Munduruku são uma das etnias mais prejudicadas por mineração e geração de energia na Amazônia brasileira.
“Hoje quem se insurge contra a mineração e outras afrontas às áreas protegidas se torna alvo. O país acumula inúmeras mortes sem solução efetiva. As condições se tornaram ainda piores com um governo que retomou discursos e ações que favorecem a violência histórica contra pretos, índios e pobres”, relatou Ana Ferreira, da Artigo 19.
Um dos casos mais gritantes foi a chacina dos Waimiri-Atroari entre 1972 e 1983. Foram massacrados por obras para mineração, geração de energia e transportes e reduzidos de 6 mil para 350 pessoas. Estima-se que em 2010 tenham alcançado 940 habitantes. Seguem refugiados em parte de seu território original, em Roraima e no Amazonas.
Enquanto isso, a participação civil é erradicada de processos políticos. Um dos primeiros atos de Jair Bolsonaro no poder foi reduzir de 700 para 50 os coletivos onde a sociedade civil influenciava a construção e a execução de políticas públicas. Um decreto de abril de 2019 encerrou comitês, comissões, grupos, equipes, fóruns e outros colegiados.
Estruturas de menor influência em questões socioambientais e sem membros da sociedade civil foram recriadas em dezembro do mesmo ano. Puro jogo de cena às vésperas da 25ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-25), em Madri (Espanha), com o Brasil acossado por críticas à disparada do desmatamento.
Enquanto isso, órgãos de fiscalização e execução de políticas ambientais federais são destroçados. Ao Ministério do Meio Ambiente foi relegado este ano o menor orçamento das últimas duas décadas. Multas ambientais são julgadas por um “comitê de conciliação” que zerou a cobrança de sanções por crimes ambientais. O passivo de multas federais não cobradas é de R$ 59 bilhões em 30 anos, como mostrei no The Intercept Brasil.
Até o momento, quase 60 alterações legais para enfraquecer a preservação ambiental foram publicadas no governo Bolsonaro, mostra análise publicada na Conservation Biology. Balanço da União Internacional para a Conservação da Natureza aponta que o Brasil é um dos países onde a pandemia é mais usada para retrocessos socioambientais. A lista inclui ataques redobrados a defensores ambientais.
O FLAGELO DA COVID-19
No fechamento desta reportagem, o Brasil contabilizava 4.200 mortos a cada dia e acumulava 340 mil vidas perdidas pela Covid-19. Projeções de especialistas apontam que mais de 5 mil mortes diárias podem ocorrer até o fim de abril. Com apenas 3% da população mundial, o país concentra um terço dessas fatalidades no mundo. A tragédia não ocorre por acaso.
O Brasil compra vacinas com um ano de atraso e corta recursos da Saúde. Em 2019, deixou de investir R$ 9 bilhões no setor e gastou R$ 7,6 bilhões em navios de guerra. Ano passado, o governo federal não investiu R$ 81 bilhões, ou 15% dos R$ 604 bilhões do “orçamento de guerra” para enfrentar o novo coronavírus. A análise foi veiculada no El País.
O desinvestimento tem efeitos colaterais severos. Faltam máscaras, oxigênio, leitos de UTI em hospitais de todo o país e insumos para produção de vacinas. Enquanto isso, as Forças Armadas mantêm hospitais com até 85% de leitos vazios, reservados para militares e familiares.
Alunos abandonam escolas públicas sem condições de manter um ensino à distância. Ao mesmo tempo, governistas agem contra o uso de máscaras e outras medidas preventivas e sugerem o uso de medicamentos inócuos contra a Covid-19, como ivermectina e hidroxicloroquina.
Críticos às “recomendações” governistas sem base científica são perseguidos e ameaçados de morte. Artigo veiculado em abril na revista Science lista agressões a especialistas como Pedro Hallal, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul. O epidemiologista coordena o maior projeto de pesquisa no Brasil sobre a Covid-19 quase perdeu o emprego por criticar Bolsonaro em uma live.
Diante deste cenário e recebendo informações distorcidas, sem vacina e com auxílio financeiro de apenas R$ 375 mensais por família , a população arrisca a vida para trabalhar e não morrer de fome. O governo segue descartando um lockdown nacional.
Cerca de 116 milhões de brasileiros, mais da metade da população, não têm garantia de comida na mesa pela crise econômica reforçada pela pandemia. Cerca de 19 milhões passam fome. É o pior cenário dos últimos 17 anos. Números oficiais mostram um recorde de 14,3 milhões de desempregados. Outros 5,9 milhões sequer buscam trabalho.
No início de abril, diante da escalada de mortes e com 13 milhões de casos acumulados de Covid-19 no país, Jair Bolsonaro renovou críticas ao isolamento social e sugeriu que ficar em casa engorda. A palhaçada veio durante uma conversa com seguidores em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília (DF). Foi imediatamente replicada em Redes Sociais bolsonaristas.
“Tem uma pesquisa aí que diz que quem tem uma vida saudável é 8 vezes menos propenso a ter problema com a covid. Mas quando você prende o cara em casa, o que ele faz em casa? Duvido que ele não aumentou um pouquinho de peso. Duvido. Até eu cresci um pouquinho a barriga”, disse, sem citar a fonte da pesquisa e provocando gargalhadas dos apoiadores, conforme o site UOL.
A atuação pífia do Governo Brasilero diante da pandemia encolhe a popularidade de Jair Bolsonaro e tornou o país uma ameaça sanitária global. Variantes do coronavírus geradas no país põem em risco os esforços mundiais contra a doença e ampliam o isolamento de um Brasil que já foi referência internacional em políticas socioambientais. Poucos países não fecharam suas fronteiras a brasileiros.
Alimentada pela letargia, zombarias e ineficiência governamentais, a pandemia do novo coronavírus também fere de morte populações indígenas e tradicionais, historicamente prejudicadas por outras doenças e impactos levados por exploradores de recursos naturais e projetos de infraestrutura.
A Covid-19 levou Aruká Juma, o último homem de seu povo na Amazônia brasileira. No Século 18 os Juma somavam até 15 mil pessoas. Massacres os reduziram a uma centena nos anos 1940. Uma nova chacina deixou apenas sete sobreviventes. Já Djalma Marubo (83) se isolou por 3 meses em sua aldeia no Vale do Javari, mas acabou morto pela doença que já levou mais de mil indígenas no Brasil.
Em abril, a pandemia vitimou Fátima Barros, liderança quilombola no município de Araguatins, no estado do Tocantins. Ela lutava contra os latifúndios e pela titulação de territórios quilombolas. A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas conta que mais de 240 quilombolas foram mortos pela Covid-19 no país.
MAIS ORDEM NA CASA LEGISLATIVA
O Acordo de Escazú também ajudará a combater a corrupção trazendo mais transparência para instituições públicas e privadas. Fraudes e influência político econômica em licitações e licenças ambientais, na tramitação de projetos legislativos e até em decisões judiciais são comuns na América Latina e Caribe.
O esforço jornalístico Terra de Resistentes identificou 517 casos de perseguição judicial contra defensores socioambientais na região entre 2009 e 2019. Informações sobre decisões judiciais foram localizadas em apenas 289 (12%) de 2.400 casos analisados no período. Denúncias formais de vítimas ocorreram em 1.325 episódios (56%). A grande maioria não teve resposta de órgãos públicos.
Em novembro de 2019, ambientalistas e brigadistas foram presos pela Polícia Federal acusados de atear fogo em Alter do Chão, no Pará, para arrecadar recursos de ONGs internacionais. O inquérito que os colocou atrás das grades por 3 dias era repleto de irregularidades e de conclusões sem provas. Foram inocentados um ano depois e a investigação que apontaria os reais criminosos foi arquivada.
Dois anos antes, em 2017, policiais buscavam 14 trabalhadores rurais em uma fazenda no Pará. Dez morreram. Sobrevivente com mais detalhes sobre a chacina do Pau d’Arco, Fernando dos Santos Araújo foi assassinado em fevereiro deste ano. Ele esteve no programa federal de proteção a testemunhas, mas havia retornado há poucos meses à fazenda onde ocorreu o massacre.
Por essas e tantas outras situações que as diretrizes de Escazú devem ser adotadas e poderão ter efeitos colaterais positivos na legislação e cenário de violência e impunidade brasileiros. Quando for ratificado, exigirá uma análise e melhorias no arcabouço legal. Pelo Acordo, países da América Latina e Caribe devem agir em bloco contra ilícitos socioambientais.
Conforme especialistas, Escazú prega uma participação efetiva e bem informada da população no planejamento e em ações públicas e privadas, como no licenciamento ambiental. Projetos de hidrelétricas, estradas e ferrovias costumam ser conhecidos apenas quando já estão aprovados por governos. As informações também devem chegar aos interessados em linguagens e formatos que facilitem seu entendimento.
“Com informações públicas garantidas sobre atividades econômicas e já nos primeiros passos de obras de infraestrutura serão reduzidos conflitos e prejuízos socioambientais. Assim o Brasil poderá se alinhar a outros países que já adotam processos mais participativos para a definição de projetos de desenvolvimento econômico, como Reino Unido e Estados Unidos”, destacou Rubens Born, da Fundação Grupo Esquel Brasil.
A medida terá impactos positivos especialmente na Amazônia, onde falta maior transparência ambiental. Análise do Instituto Centro de Vida revelou que ainda é difícil comprovar a legalidade da agropecuária e de outras atividades econômicas pela baixa transparência de órgãos públicos federais e estaduais. A ONG atua desde 1991 para melhorar políticas públicas sobre governança e transparência ambientais.
Conforme Escazú, o público também deverá ser informado sobre como sua opinião foi levada em conta por governos e empreendedores em audiências públicas sobre projetos como de infraestrutura. Além disso, organizações privadas que recebam ou que executem projetos com fundos ou benefícios públicos também deverão prestar informações aos brasileiros.
“O Acordo traz critérios bastante interessantes, como de idoneidade, necessidade e proporcionalidade, para fundamentar e reduzir as margens para interpretações em decisões administrativas sobre o acesso à informação pública”, explicou a procuradora de Justiça Sílvia Cappelli, do Ministério Público do Rio Grande do Sul e membro do Instituto O Direito por um Planeta Verde.
A entidade sem fins lucrativos reúne pesquisadores e especialistas dedicados ao aprimoramento da legislação social e ambiental no país.
Outra diretriz veta retrocessos e estimula melhorias contínuas na legislação socioambiental. Para isso, os países não precisam equalizar legislações, mas sim “actuar sobre la base del espíritu y los contenidos del Acuerdo, que en muchos casos nos remiten al cumplimiento efectivo de la legislación nacional ya existente”, explicou Carlos de Miguel, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
“Escazú es un Acuerdo de piso, pero no de techo. Todos los países pueden ser siempre más ambiciosos. Además, aquellos países que están más avanzados en estos aspectos no pueden retroceder en los mismos para equipararse a un ‘promedio’ regional”, completou de Miguel.
Com tantas promessas positivas, a rota rumo à ratificação de Escazú deve enfrentar resistências de setores conservadores cujos lucros crescem com o desrespeito e o desmonte da legislação. Mas assim como outros acordos internacionais, o Acordo será um instrumento de pressão política para que a América Latina e Caribe tenham um ambiente cada vez mais seguro para defensores ambientais.
Enquanto isso não ocorre e o país enfrenta uma tempestade perfeita com um governo de extrema-direita, poderoso avanço da destruição da natureza, pandemia de Covid-19 e recessão econômica, o professor de Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, José Luís Fiori, sugere medidas para que partidos e movimentos sociais reduzam o sofrimento dos brasileiros.
“Ajudar o povo a enfrentar e superar este momento terrível da sua história, propondo medidas parlamentares que possam atenuar o sofrimento da população, o desemprego e a morte de milhares de brasileiros ainda este ano e no próximo. Unir-se e fazer oposição ferrenha a esse governo, para impedir a desintegração completa das redes de sociabilidade que ainda mantém o Brasil unido e somar forças para que nunca mais volte a acontecer no Brasil uma tragédia dessas proporções.”, disse Fiori em entrevista ao portal Tutaméia.